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terça-feira, 8 de janeiro de 2008

AS MILÍCIAS NO PODER - O indiscreto interesse das novelas

As novelas da Rede Globo representam o maior canal de recepção de informação audiovisual da população brasileira. É um traçado diário da vida burguesa e pequeno-burguesa, em geral do Rio de Janeiro ou São Paulo, com algum núcleo pobre para passar uma imagem democrática, mas que é sempre subserviente ao núcleo rico. A relação de classes é de amizade ou tutela, raramente há conflito. A novela não é a vida real. Mas sim a verdade que a elite quer que as pessoas recepcionem. Que é ilógica!

O trabalhador e a trabalhadora, quando assistem à novela, ao fim do dia vêem como são feios. Claro, porque o folhetim televisivo mostra como as pessoas devem sonhar em ser, contanto que sejam muito diferentes do que são realmente. Há uma situação plástica para apresentar modelos de pessoas sob dada conduta e estética idealizada. Por exemplo: é a mulher super 'turbinada' com operações plásticas, tendo 60 anos e jeitinho, face de 20 – algo que faça o marido, em casa, virar para a mulher e sofrer de desilusão. E vice-versa, quando a mulher vê o galã e olha para a barriga do marido. Por mais que na vida real ele(o galã) seja homossexual.

Os sonhos são transplantados para a irrealidade dos atores e atrizes de novela. Como as crianças, com suas mentes feéricas, empurradas pela mega-produção jornalística e publicitária joga os sonhos sob o 'ser jogador de futebol'. O mecanismo é de captação dos desejos, onde ao fim do dia, em frente à televisão, a vida parece confortável e cheia de colorido – na imagem da TV. O cinza da labuta diária tem seus momentos olvidados durante aqueles minutos. Então, o colorido das coisas é monopolizado pela imagem da novela.

Há uma plástica no conviver das pessoas entre patrão e empregado. O bom empresário é aquele que trabalha bastante, faz 'tudo certo', não é o vilão – como se cumprir as regras do sistema condissesse com algo positivo. A situação é de aceitar a moral burguesa como o paradigma do viver bem. O bem é formado por uma ética que não revela a situação das forças produtivas e a luta de classes na sociedade. O mal tem relação com as brigas amorosas, o 'mal caráter' por natureza ou pelas relações intra-familiares. O pobre pode ser bom, feliz e, até confiável, quando possui uma relação de empatia com o patrão. Escamoteiam-se as situações de conflito, como briguinhas amorosas ou que a imoralidade seja a efetividade dos sete pecados capitais.

As novelas sabem captar muito bem as situações do cotidiano e refletir sua ideologia. É um espelho falso. Diz refletir a realidade, mas mostra inversões, distorções, além de refletir sombra – jamais luz. O giro vai sobre a distração, distorção e o destratamento: o entretenimento é remodelado para fazer daquilo uma não identidade com aqueles que assistem à trama. Ou seja, aliena, se se deixar enredar por seus discursos, quase emburrece. Até diferente do que já ocorreu com novelas antigas, não há mais cultura ou enredo construído a partir de material literário de qualidade, como por exemplo a mini-série O Pagador de Promessas, de Dias Gomes. Pode ser interessante como um instrumento de análise acerca daquilo que a burguesia apresenta para ser o script do pensamento comum. A análise a seguir parte disso: entender que as massas assistem à novela, e que é preciso explicar, dialogar com as pessoas sobre a não ingenuidade das situações de vida novelesca, permeadas pelas belas e mesmíssimas imagens de alguma metrópole ou lugar bucólico no interior do país. E até mesmo quando mostra a face do povo pobre, do nordestino do sertão ou do favelado, acaba fazendo os devidos relativismos. Tomemos o exemplo do programa que é pensado pelo antropólogo Hermano Viana, e apresentado por Regina Case, o "Central da Periferia", da Rede Globo – que busca apresentar a situação de felicidade da população de dada periferia com sua irreverência e criatividade como se todos vivessem bem na situação de periferia. Isto é, uma coisa é dar valor para as pessoas como igual a qualquer outro que more em qualquer outro lugar do país – isso é correto; mas não se pode conceber a naturalização da precariedade, das mazelas, da falta de infra-estrutura, do desemprego – como se dissesse: 'eles(as pessoas da periferia) vivem bem e felizes onde e como estão, pois são talentosos, não precisam mudar de vida para terem um sorriso ou sua diversão, eles se contentam como estão'. É um puro relativismo, também serve para deixar de lado o conflito. Assim como só nos shows e eventos culturais, nos novelescos casos de intriga, amor e ódio: há política.

A atual novela das 'oito', Duas Caras, de Agnaldo Silva, transmitida pela Rede Globo faz uma clara defesa das milícias. O que são as milícias e o porquê disso tudo? Milícias são tropas de guerra, designação de organizações militares ou paramilitares compostas por civis; no caso do Rio de Janeiro são de controle privado e para segurança interna – em uma dada comunidade ou espaço específico. Grupo de homens, já com alguma experiência com armas de fogo (como policiais ou ex-policiais) ou mesmo inexperientes, em torno de um líder local, e que fazem a 'proteção' da comunidade (favela), evitando e/ou controlando o tráfico de drogas; são financiados pela pequena burguesia local(comerciantes, principalmente) e moradores, quando não pelos próprios grupos traficantes que são protegidos, evitando a concorrência. A Globo não diz isso descaradamente, mas mostra que a guerra é um fato no Rio de Janeiro; e a existência das milícias como poder para-estatal. E essa milícia que é apresentada na novela, pretendendo ser um retrato do que acontece na em favela de Jacarepaguá, não é igual à chamada "P2" ou "Polícia Mineira" – essa é quase restrita na situação ostensiva de defesa/ataque frente aos traficantes, não tem uma relação aberta e em vários âmbitos da comunidade, como no caso da Portelinha.

Antônio Fagundes (atuando como Juvenal Antena) representa o líder da Portelinha, uma favela que ele mesmo criou. O foco é na ação individual do personagem – homem respeitado, que impõe sua posição frente aos interesses de uma construtora e defende a população. Juvenal chefia a milícia que atua 'no braço e impondo respeito', fazendo a proteção da favela. Mesmo truculento e brucutu, Juvenal é figura com acesso livre e irrestrito em todas as atividades da favela (isso é um elemento que diferencia da 'polícia mineira') possuindo poder sobre todas: dá palpite na escola de samba, sobre a relação com o poder público municipal e até certas relações privadas dos moradores. Ou seja, é o 'boa praça', que é chefe legítimo e admirado na comunidade.

Na verdade apresenta-se uma forma de purificar a ação das milícias. Não significa dizer que mostra o 'lado positivo' das milícias. Isso não existe. Onde já se viu milícia que age, em geral sem armas em favela do Rio de Janeiro, atua 'só no braço'!? O que se quer com isso?

A ação da polícia nunca foi a de complacência com as massas. A polícia é o aparelho do Estado de repressão e manutenção da ordem. É singularmente contra-revolucionária. Como a situação da sociedade se torna pior, e a barbárie é o resultado da crise do capitalismo – mortes no atacado, desvalorização da vida, desumanização, perca dos valores burgueses. Instrumentos de manutenção da ordem se fragmentam para o domínio direto da burguesia: é mais seguro ter uma polícia própria, do que fazer a ponte com o Estado, utilizando a polícia pública(que já foi arruinada com a destruição financeira do próprio Estado, pela mesma burguesia). Então a Globo quer dizer: 'os ricos tem sua própria polícia, ou as suas polícias privadas – empresas de segurança, seguranças particulares, etc.; mas os pobres também podem ter a sua: as milícias, e de quebra com um líder defensor dos fracos, que tem simpatia com todo mundo e enfrenta os ricos inescrupulosos, pois com 'os éticos' há até amizade'.

A novela apresenta um quadro, deformado e idealizado da sociedade, mas também os choques e desestruturações da vida social. Oculta a podridão que é inerente ao sistema capitalista, e que é a partir dele que os problemas acontecem. Há uma encruzilhada que não se resolve na novela, exatamente pelo fato haver uma despolitização do cotidiano sendo colocado para o público. Como se política fosse algo ruim, onde todos os políticos são ruins, bem como os movimentos sociais. Até mesmo a novela Duas Caras deslegitima os movimentos estudantis quando apresentou uma reivindicação dentro de uma universidade como parte da manobra de oposição da reitoria. Querendo dizer que as pessoas não devem fazer política, pois na verdade são manipuladas por líderes com interesses pessoais. Então o melhor é deixar com que aqueles 'mais éticos' façam tudo. Os ricos podem fazer política, pois tem tempo e dinheiro – aos trabalhadores cabe seguir as regras e trabalhar muito. Ou seja, são imagens e discursos que levam a classe trabalhadora para o buraco. Revelar o que significa dar um senso comum de desleixo para com a política e dizendo que, ou rumamos para o socialismo, ou cairemos nesse caldo de sangue, desemprego, alienação, despolitização e vida barata. A novela vira instrumento de promoção da barbárie, do extermínio. Não é possível haver passividade frente a esse aparelho de controle!

Por Luiz Ramiro