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terça-feira, 24 de junho de 2008

repressão em Araraquara

Uma
reflexão
feita um
ano depois


Na madrugada do dia 20 de junho de 2007, um contingente enorme da tropa de choque invadiu, ou melhor, entrou sem nenhum impedimento pela porta da frente da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da UNESP de Araraquara. Todo esse aparato militar cinematográfico foi utilizado para cumprir um mandato de reintegração de posse da Diretoria daquela unidade, onde estudantes encontravam-se ocupados.

A ocupação da Diretoria fazia parte de um calendário de lutas dos estudantes das universidades estaduais paulistas, que estavam ocorrendo naquele momento. Essas lutas foram desencadeadas principalmente, após a promulgação de alguns decretos pelo governador José Serra (PSDB), que entre outras coisas, feria a autonomia das universidades.
O ponto de partida foi a ocupação da Reitoria da USP em São Paulo, que durou cerca de 50 dias. Depois, uma onda de mobilizações de estudantes, professores e funcionários, varreram as estaduais paulistas. Porém, um ponto a ser observado é o de que a maior mobilização e consciência nesse processo de sucateamento e de precarização que vêm sofrendo o ensino público, vieram por parte dos estudantes.

O objetivo neste breve texto, não é somente relatar os acontecimentos passados, mas também, propor algumas reflexões. Passaram-se um ano e os problemas da universidade pública permanecem. Dentre eles, podemos citar: o sucateamento do ensino, sem nos esquecer da precarização das relações de trabalho dos servidores públicos e dos muitos funcionários terceirizados, dentro da universidade; o corte de verbas para a permanência dos estudantes de baixa renda. O sistema de contratação dos professores ainda é o mesmo, de caráter temporário, sem nenhum vínculo empregatício. Isso impossibilita a realização de trabalhos de pesquisa (um dos tripés do ensino público), provocando também a falta de orientação aos estudantes.

Na UNESP de Araraquara houve repressão ao movimento estudantil, pois três estudantes sofreram um processo de sindicância e acabaram sendo suspensos pela Congregação (órgão máximo deliberativo da universidade). Aliás, nós estudantes, fomos duramente reprimidos exatamente no momento ápice de nossa organização e mobilização, afinal de contas, manter uma ocupação não é tarefa fácil.

Nossa organização se pautava em Comissões rotativas e abertas, de alimentação, limpeza, segurança, de imprensa e etc. Deixamos o conforto de nossos lares, todos os nossos afazeres e compromissos, para nos dedicar a uma causa nobre e que diz respeito ao conjunto da sociedade: os problemas da universidade pública, o sucateamento do ensino e a privatização da educação. Todas essas questões são fruto de um processo histórico e há anos vêm sendo discutidas pelo movimento estudantil.

O cotidiano da ocupação foi permeado por discussões políticas, debates, atividades lúdico-esportivas e o mais importante, por um sentimento de luta e companheirismo compartilhado por todos, que naquele momento, deixaram de lado suas diferenças ideológicas para se unirem a uma só causa: a defesa intransigente da universidade pública.
Por que será que incomodamos tanto? Será que é por que nossos questionamentos estavam pautados na realidade e não numa aspiração lunática? Ou por que, atrapalhamos a ordem e o funcionamento normal da universidade?

A história das lutas de classes nos mostra que quanto mais a ação se radicaliza, mais cresce a reação. E foi isso que presenciamos na UNESP de Araraquara. A “reação” passou a se organizar e tentou acabar com o nosso movimento e nossa mobilização. Numa Assembléia lotada e conturbada, os estudantes contrários a greve e a ocupação, mostraram suas “garras” e em atitudes totalmente reacionárias e direitistas, recusaram-se a realizar qualquer tipo de discussão e a única coisa que desejavam era votar pelo fim da greve e da ocupação.
Nesta Assembléia do dia 19 de junho de 2007, estavam presentes cerca de 800 estudantes. O primeiro problema que tivemos de enfrentar foi em relação ao espaço físico. O Anfiteatro da FCL não agrega esse número de pessoas. Nos deslocamos para um espaço abaixo da biblioteca.

Quando conseguimos nos acomodar, já se passava das 22 horas. A discussão começou a acontecer em torno de uma questão que não era central: se a Assembléia teria um teto para terminar, ou se só sairíamos dali depois de discutir toda nossa pauta. Isso foi posto em votação. Percebendo que a segunda alternativa, estava prestes a vencer, um grupo de estudantes reacionários, voltou a tumultuar a plenária e começaram a gritar que iriam invadir a ocupação, com o intuito de quebrar coisas, enfim “badernar” algo que estava organizado e colocar a culpa nos estudantes que estavam mobilizados.

Foi uma tremenda correria. Houve agressões verbais e até físicas. Estudantes contrários ao movimento começaram a nos ofender, a proferir palavras preconceituosas, homofóbicas, sempre na tentativa de por fim a toda nossa mobilização.
Todos se dirigiram ao espaço em frente a Diretoria ocupada. Os estudantes que ali permaneceram, iniciaram uma plenária para discutir os fatos ocorridos naquela noite. A discussão correu madrugada adentro. Quando por volta das 2 horas da madrugada, fomos surpreendidos com a “visita” da Tropa de Choque.

Posso dizer que foi no mínimo, assustador. Será que éramos tão perigosos assim, a ponto de ter uma média de pouco mais de dois policiais para cada estudante? Nós não reagimos, colocamos em prática nosso plano de ação; distribuímos, conforme já havia sido combinado, alguns estudantes para o lado de fora e os demais ficaram do lado de dentro da diretoria. Aos poucos fomos saindo, todos juntos, de braços dados cantando uma música de protesto e gritando em coro: “São 20 anos sem ditadura e a repressão ainda continua”.
Acredito que nossa saída foi triunfal, afinal em nenhum momento abaixamos a cabeça e perdemos a união. Na calada da noite, a tropa de choque entra pelo portão da frente da FCL e junto ao comboio de policias, está o nosso diretor, que sob o respaldo da Congregação, permitiu tamanha barbárie.

Fomos levados a um Distrito Policial por dois ônibus da CTA (Companhia de Transporte de Araraquara). Por lá, permanecemos cerca de 8 horas dentro desses ônibus. Aos poucos, um a um foi descendo à Delegacia e prestando seu depoimento. Fomos qualificados e logo em seguida, liberados.

Foi uma madrugada de medo, angústia, cansaço e inconformismo. Afinal de contas, não estávamos dispostos a negociar com a polícia, mas com a Diretoria da universidade. Um detalhe importante, o campus no ato da invasão foi evacuado, não havia mais nenhum funcionário e os portões foram trancados. A imprensa, os (poucos) professores que nos apoiavam e nossos colegas que estavam do lado de fora foram impedidos de entrar.

Um ano depois, o que fica para nós é a percepção de que a história é construída pela luta de classes, pelos seres humanos e de que nós fomos e sempre vamos ser sujeitos históricos dessa luta. É por isso, que a memória dessa luta nunca pode se perder; afinal cada um de nós se lembra dos fatos de formas diferentes, mas a memória em si é coletiva e uma forma de resistência.

* Gracielli Prata – 4° ano de Ciências Sociais da UNESP – Araraquara